Billie Holiday, Strange Fruit e 100 anos do Jazz

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Reprodução

Há alguns anos, em uma sala de aula, mostrei um vídeo de Jazz para uma turma – era Nina Simone interpretando Love me or leave me – buscando demonstrar (como venho fazendo neste espaço) como nem tudo que a cultura industrial moderna produz é destituído de qualidade. Não sei se surtiu efeito. Lembro que causou certo espanto. Nostalgia. Pareceu ser até melancólico também. Mas foi, lembro-me, acima de tudo, Estranho.

É estranho, porque parece não fazer mais parte desse mundo. Quando, em 1917, os brancos da Original Dixieland Jazz Band, “donos de uma cara de pau invejável” (Vinícius Mesquita, Jazz – um livro pequeno e perspicaz) resolveram se auto intitular os inventores do Jazz, talvez não imaginassem que se tornaria o estilo musical mais importante do século passado.

Sim, há um tom proposital em dizer “do século passado”. Não para repetir a conversa de que o “Jazz morreu”, mas, principalmente, para marcar a circunstância de uma de suas maiores expressões históricas, a música Strange Fruit, gravada e interpretada por Billie Holiday, em 1939. Quem nos conta essa história em detalhes é David Margolick em seu fabuloso livro Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção (Strange Fruit: Billie Holiday, Café Society and early cry for civil rights).

A música surgiu de um poema de Abel Meeropol sobre os linchamentos de negros que ocorriam nos Estados Unidos após a Guerra Civil. A inspiração teria vindo de uma fotografia de uma dessas atrocidades ocorrida em 1930, em Marion, Indiana. Uma terrível e conhecida imagem na qual dois negros, após serem bestialmente agredidos, estão pendurados em uma árvore, enforcados. Uma imagem que, como se sabe, nada tinha de incomum, principalmente no Sul Norte-Americano, no qual, em alguns casos, os corpos, ao final da barbárie, eram ainda queimados. Esse é o tema de Strange Fruit.

Foi no Café Society, em Nova York, que Meeropol apresentou a música à Holiday. E foi lá, em um lugar mais progressista e mais aberto, famoso por receber celebridades e “esquerdistas variados”, que Lady Day marcou a história da canção e do lugar. Quando ela gravou a música, pela Commodore Records, houve espanto, afinal Billie era conhecida por cantar músicas com letras “bobas”, como os livros que lia, e a letra que gravara era ironicamente pulsante, com um tema que ainda pairava nas cabeças estadunidenses.

Mas espanto também pela beleza. Após a introdução de Sonny White, diz a bela descrição de Margolick, vinha a voz de Miss Holiday, “ela é sombria e determinada, mas conserva ainda uma adorável leveza. Não é melodramática; nada chorosa; nada histriônica. Sua elocução é soberba, com um vago sotaque sulista; o tom é langoroso porém firme, cru mas macio, jovem mas maduro. O sentimento predominante não é a dor ou a derrota, mas o desprezo e a segurança, perceptíveis quando ela cospe as referências à galanteria sulista e às magnólias de perfume adocicado”. E, como muitos observaram, em sentimento cuspido quando ela canta, em um final propositalmente abrupto, a palavra “crop” (colheita).

Não há nada parecido. Nenhuma versão se aproxima do que Billie fez (considero a de Nina Simone outra versão estupenda). Há um vídeo de Holiday, de 1959, em Londres. Vejam. Ali, Billie, em seu derradeiro momento, encarna a música e a música a define. Ali está, não importa se em sua fase de decadência ou não, “a experiência de ouvir e ver Billie Holiday cantando Strange Fruit: os olhos fechados, a cabeça jogada para trás, a gardênia de sempre atrás da orelha, o batom rubi realçando a pele escura, os dedos estalando de leve, as mãos segurando o microfone como se fosse uma xícara de chá”.

Ao escutar essa canção, já se disse, vemos a história passar, a dor do ocorrido e a vida de Billie. A personagem que carrega consigo todos os estereótipos, verdadeiros ou não, do centenário estilo musical. E que, por isso, incontestavelmente, mais o representa. Quando Holiday canta sobre os corpos pendurados, essa estranha fruta que se via no galante Sul, não estamos mais, evidentemente, apenas no território da gratuita fruição musical, estamos no território do sublime. Algo que não se encerra nele mesmo, algo que não se pode descrever com exatidão, mas, principalmente, algo que não se pode ignorar, virando-se o rosto para a história, para o inabordável.

Não é apenas mais uma experiência gratificante, é, principalmente, uma experiência que nos mostra como não apenas não existem mais músicas e interpretações assim – e isso seria só um saudosismo ineficaz -, mas o quanto somos hoje, assustadoramente, galantes do que escutamos e vemos.

Beleza. Espanto. Estranhamento. É estranho, porque parece não fazer mais parte desse mundo.

 

Uma versão deste texto foi publicada em O Liberal, 28 de março de 2017, p. 2.  E em: Digestivo Cultural

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